Que força é essa
que força é essa
que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo
que força é essa, amigo
que te põe de bem com outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Não me digas que não me compr´endes
quando os dias se tornam azedos
não me digas que nunca sentiste
uma força a crescer-te nos dedos
e uma raiva a nascer-te nos dentes
Não me digas que não me compr´endes
Sim, compreendo-te ! – gritei eu por dentro, com a peito a estalar, o olhar liquefeito e um frémito a percorrer-me a espinha…. Eu compreendo-te, Sérgio Godinho! Ou és tu que me compreendes?… Teria eu 16 ou 17 anos, a estudar ou a ler noite fora enquanto ouvia rádio… Os censores e os pides devem estar a dormir a esta hora! Estaria em 1971, o ano da gravação, em França, do disco “Os sobreviventes”, ou, talvez, em 1972, quando uma das faixas, “O Charlatão”, esteve no 10º lugar do Top Twenty dos singles mais vendidos ( três lugares à frente de “Imagine” de John Lennon), na discoteca Esquina (o lugar de descoberta de novidades musicais subversivas e inovadoras, em Viseu, tal como a Livraria Tempo Livre o seria para a literatura, alvo maior das apreensões da PIDE). Na classe dos LP, logo a seguir ao “If 3”, “Meddle” dos Pink Floyd e “Led Zeppelin IV”, a preferência dos viseenses ia para “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”, de José Mário Branco, onde também surge “O Charlatão”, com música do Zé Mário. “No beco dos mal-fadados/ os catraios passam fome/ têm os dentes enterrados no pão que ninguém mais come/ os catraios passam fome” // “Entre a rua e o país/vai o passo de um anão/ vai o rei que ninguém quis/ vai o tiro de um canhão/ e o trono é do charlatão”.
A débil politização vinha da música de intervenção, de alguns amigos mais velhos que contavam histórias da guerra colonial, e das entrelinhas dos jornais e revistas que passavam na rede da censura prévia. A minha única acção antifascista foi a distribuição “clandestina” da edição única do jornal “Paralelo 40”, feito nesse ano de 1972, na tipografia Éden Gráfico, dos alunos da Escola Industrial e Comercial de Viseu, sem respeitar os cortes dos dois censores/”professores orientadores” , em textos com referências à Chacina de My Lai, no Vietnam, pela tropa dos EUA, ou ao nobelizado Bertrand Russel, por ter escrito o “Porque Não Sou Cristão?” (um dos censores era cónego). O único acto repressivo de que posso orgulhar de ter sofrido, foi uma ameaça de expulsão por parte do director da escola, um fascistoide prepotente.
Mais difícil foi dar a perceber ao meu pai que eu só queria estudar para aprender línguas e poder exilar-me num país qualquer onde me aceitassem como refractário da Guerra Colonial, que eu achava preferível a desertar para me juntar ao único lado justo da guerra. O meu pai, que foi um homem bom, não sabia, nem eu na altura, que de 1961 a 1974, 100 mil jovens portugueses saíram de Portugal para não irem para a guerra, tantos quantos os que partiram para lutar, a maioria a contragosto, contra os povos das colónias
O 25 de Abril furou-me os planos, felizmente. Também o Povo furou os planos de Spínola e outros militares conservadores que alinharam com o MFA, ao transformar um golpe de Estado numa revolução. O Povo foi quem mais ordenou. Mas apenas durante o ano e meio que durou a Revolução.
“A Paz, o pão, habitação, saúde, educação,/ só há liberdade a sério quando houver/ liberdade de pensar e de decidir/ e quando pertencer ao Povo/ o que o Povo produzir”. Nesta canção do Sérgio está todo o programa da Revol ução.
25 de Abril, sempre! Uma ova!… Ainda conseguiu abortar dois golpes dos spinolistas, mas depois do golpe de direita do 25 de Novembro, Abril foi (re)conduzido ao redil.
O salazarismo foi a primeira e a última ditadura da Europa, no século XX. Caiu da cadeira com estrondo, mas não sem resistência. Os fascistas reciclaram-se, viraram a casaca, formaram e aderiram a partidos democráticos, mas não deixaram de conspirar contra a democracia, violentamente durante o PREC – Processo Revolucionário em Curso, e agora escudados com a ditadura financeira da Troika.
Em Viseu conhecemo-los bem. No princípio de Junho de 1976, uns 40 ou 50 militantes e simpatizantes dos partidos de direita, hoje do chamado “arco do poder” (disse “poder” ? “Enganou-te, trocou-te a gramática…”), à mistura com operacionais da extrema-direita, e pelo menos um operacional do ELP, uma das organizações implicadas na rede bombista, provocaram e agrediram meia dúzia de militantes da esquerda revolucionária, nomeadamente da UDP, que com mais vinte ou trinta homens e mulheres, alguns idosos, apoiantes da candidatura de Otelo à Presidência da República, aguardavam aquele militar de Abril junto à Cava de Viriato. Eu fui com meia dúzia de camaradas ao encontro de Otelo, para o avisar da recepção fascista, mas já a caravana do candidato presidencial tinha sido atacada a tiro, perto de Castro Daire, pelo que foi decidido não passar por Viseu, cortando pelas Termas do Carvalhal para S. Pedro do Sul em direcção a Aveiro, onde tinha um comício nessa noite.
Face às ameaças dos fascistas, e tendo em conta que alguns tinham participado na tentativa de assalto, a tiro, à sede do PCP em Viseu, em 20 de Julho de 75, os militantes revolucionários, com a solidariedade de outros antifascistas, decidiram defender a sede da UDP, no Solar dos Peixotos (que hoje alberga a Assembleia Municipal de Viseu). Avisou-se a PSP e o RIV de que iriamos defender a todo o custo a nossa sede, responsabilizando as forças policiais e militares pelos actos violentos que viessem a ocorrer. Uma brigada fez cartazes que colou pela cidade denunciando à população as provocações da direita fascista. A mobilização popular e a operação montada pela PSP nas entradas e saídas da cidade, deve ter dissuadido o ataque que se indiciava.
No “Dossier Terrorismo” das edições Avante, são mencionados elementos da rede bombista do MDLP( de Spinola e Galvão) e do ELP, com ligações ao PPD e ao CDS, responsáveis por uma dezena de mortes, incluindo militantes do PCP, sindicalistas, e o padre Maximino de Sousa (candidato pela UDP) e a estudante Maria de Lurdes Pereira. Para além de inúmeras agressões e atentados à bomba falhados, em casas e automóveis de militantes de esquerda, incluindo do MDP/CDE e até do PS. Não esquecemos!
“O fascismo é uma minhoca/ que penetra na maçã/ ou vem com botas cardadas ou com pezinhos de lã” (Sérgio Godinho)
O reputado filósofo holandês Rob Riemen, em “O Eterno Retorno do Fascismo” diz o mesmo por outras palavras: “Os fascistas do século XXI não se assumirão como fascistas”. 40 anos depois de Abril, o que vemos: salário mínimo inferior ao de 1974, 120 mil crianças com fome, 2 milhões de pobres, desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde, da Escola Pública e da Segurança Social. O governo faz tábua rasa da Constituição da República e a Presidente da Assembleia da República é insultuosa com os militares de Abril. O problema não é deles, é nosso. Não foi para isto que fizemos o 25 de Abril. Formalmente ainda vivemos em democracia, mas…
“Cuidado, Casimiro/ cuidado com as imitações/ cuidado, minha gente/ cuidado justamente com as imitações” (Sérgio Godinho).
Carlos Vieira e Castro