O Festival Internacional de Música da Primavera de Viseu, que animou a nossa cidade durante todo o mês de Abril, cumpriu a sua 15a edição. A sua consolidação na comunidade vê-se pela forma como os viseenses encheram as salas de concertos, onde, aliás, cada vez mais acorrem melómanos de todo o país. O regresso à normalidade, após duas edições condicionadas pela pandemia da Covid 19, com transmissões live streaming, permitiu a fruição presencial de 19 concertos, quase todos repartidos entre o Teatro Viriato e a Aula Magna do Instituto Politécnico de Viseu, mas também no Museu Nacional Grão Vasco, na Igreja da Misericórdia e na Escola Secundária de Emídio Navarro.
A aferir a qualidade deste festival está o facto, realçado por José Perdigão, representante de um dos seus 11 mecenas, de o vencedor do Concurso Internacional de Piano de Viseu, em 2019, em ex-aequo com o chinês QianyiXu, ter sido o canadiano Bruce (Xiaoyu) Liu, que venceu a edição do ano passado de um dos mais prestigiados concursos de piano do Mundo, o Concurso Internacional de Piano Frédéric Chopin, em Varsóvia. Também se poderá aquilatar a fasquia de qualidade deste concurso bianual, integrado no Festival da Primavera, pela constatação de que só na sua 4a edição, em 2021, é que um pianista português, Alexander Stretile, chegou a uma semi-final.
Este ano teve lugar o Concurso Internacional de Guitarra, também bianual, que mais uma vez trouxe a Viseu excelentes executantes de todo o mundo. Para além dos habituais concertos dos Professores do Conservatório de Música de Viseu, na abertura do Festival, e do Concerto de Laureados do 13º, o Concurso de Instrumentistas do Conservatório, o programa contemplou concertos de Qing Li, multipremiado pianista (foi vencedor, entre outros, do 4o Concurso Internacional de Piano de Viseu), de Re:Flexus Trio, e dos guitaristas Elia Portarena (italiano, vencedor de mais de cinquenta concursos na Europa e no Japão), do eslovaco Karol Samuelcik e do Duo Melis, da espanhola Susana Prieto e do grego Alexis Muzurakis. O Trio Cavalcade encantou o público com músicas de Erik Satie e de Mathias Duplessy, um dos guitarristas do grupo a par com Jérémy Jouve, acompanhados pela baterista Stéphane Edouard.
Destaque ainda para o concerto da Orquestra Juvenil de Viseu, dirigida pelo maestro Cláudio Ferreira, pela sua importância para a formação contínua dos alunos de música do concelho, em parceria do Conservatório Regional de Música de Viseu Dr. José de Azeredo Perdigão com a Câmara Municipal de Viseu.
A Orquestra de Saxofones do Dão (que reúne actuais e antigos alunos de saxofone de diversas escolas, bandas, academias e conservatórios da região) dirigida pelo maestro convidado Henrique Portovedo, brindou-nos com a estreia mundial de “Canzona V” de Christopher Bochmann, compositor e maestro de renome internacional (agraciado com uma Medalha de Mérito Cultural pelo Ministério da Cultura e condecorado pela Raínha Isabel II), presente no concerto. O restante programa deste concerto teve a participação do moçambicano Aldovino Munguambe, professor no Conservatório de Música de Viseu e dos seus jovens alunos de percussão.
Verdadeiramente surpreendente foi o concerto de Abraham Cupeiro, com a sua (e de María Ruiz) obra “Pangea”, em que o construtor de instrumentos antigos e multi-instrumentista galego nos conduz, a bordo da Orquestra POEMa dirigida por Tiago Correia, numa viagem por várias culturas perdidas no tempo, começando na Oceânia e acabando na Costa Atlântica, com escalas na China, Américas do Norte e do Sul, África, Arménia e Bulgária, tocando instrumentos de sopro daquelas regiões, tão primitivos como búzios, chifres, penas de pássaros, flautas várias, gaita de foles, culminando no mais exótico Karnys, uma trompete celta da Idade do Ferro, com um som tão impressionante quanto o seu impacto cénico, empunhado por aquela imponente figura de bardo sugerida por Cupeiro.
Seguiu-se outro inusitado espectáculo, misto de concerto musical e “teatro clown” ou pantomima, CAR12, A Grande Viagem, uma ideia original de Miguel Cardoso (contrabaixista) que interpreta em dueto com André Cardoso (professor de guitarra no Conservatório de Música de Viseu), também co-responsável pela concepção, estreado em Tondela em 2020 na ACERT, que o produziu. Trata-se de um genial delírio de criatividade que só poderia resultar da performance de dois músicos extraordinários, com uma cumplicidade gerada pela partilha de vários projectos musicais, do jazz ao folk (com destaque para A Presença das Formigas, um dos mais criativos grupos inspirados na música tradicional portuguesa).
Instrumentos improvisados a partir de objectos utilitários, como um contrabaixo feito com a aduela de um pipo, ou uma guitarra construída numa pá do lixo, e inúmeros outros que se encaixam e se desmultiplicam, de difícil e malabarística execução, provocaram o delírio do público de todas as idades.
O extraordinário guitarrista italiano Carlo Curatolo, premiado em mais de 30 concursos internacionais, fez a primeira parte de um dos espectáculos que mais suscitaram os aplausos do público: Carles Pons, guitarrista catalão, e o argentino Dario Polonara, no bandoneon, interpretaram tangos, milongas e outras músicas latino-americanas, de Piazzolla e Gardel a Atahualpa Yupanqui e Jobim. A ligação do tango à música erudita ficou marcada pelo “Tango para piano” de Stravinsky, o “Tango-Ballade” e “Tango-Habanera” de Kurt Weill, ou o “Tango Perpétuel” de Erik Satie. O tango, fusão da milonga e da habanera (donde retira o ritmo 2/4), embora Jorge Luis Borges, na sua obra “O Tango”, aluda à tese de a milonga, de influências negras, ter sido uma música que se dançou por influência do tango, foi, segundo Fernanda Godinho Esteves, “uma forma de os emigrantes ultrapassarem as diferenças culturais e linguísticas, tirando-a da sua bagagem cultural e usando a linguagem da dança”. É esta imagem de sensualidade ao mesmo tempo nobre e canalha dos libertinos “lunfardos” dos bairros portenhos que nos sugere Dario Polonara com o seu prodigioso bandoneon.
E surge a estreia de 3 obras de compositores portugueses, encomenda conjunta deste Festival com a Miso Music Portugal: “Naked Lunch” de Sara Carvalho, uma interessante peça de sons aparentemente desgarrados, embora interligados por subtis ressonâncias.
Seguiu-se “As 7 Trombetas e a Nova Jerusalém” de José Carlos Sousa, uma obra de complexos jogos entre harmonia e ritmo, que confirma a maturidade deste compositor, em que os metais representam a dor e o sofrimento inspirados no livro do Apocalipse, com as 7 trombetas a anunciarem as 7 pragas castigadoras da humanidade, e ajudam a criar com os restantes instrumentos (da Orquestra Filarmónica Portuguesa, dirigida pelo maestro Osvaldo Ferreira), ambientes sonoros, com “massas de som”, isto é unidades de som compostas pela sua instrumentação, registo, relação de intervalos, forma rítmica e volume, a recordar-nos as mais revolucionárias composições de Edgar Varèse.
Por último, “La Transfiguration de l’Impossible”, de Miguel Azguime, interessantíssima composição, na linha dos inestimáveis contributos para a música contemporêna portuguesa do fundador, com Paula Azguime, do Miso Ensemble.
A expectável audição de músicas de jazz por José Magalhães, nos saxofones, e Aldovino Munguambe, na percussão, revelou-se redutora e este dueto fixou-se na nossa memória com um dos mais notáveis concertos de música (em sentido amplo) deste festival.
A 2a parte deste concerto coube ao Ibertrio, com o programa “Música: Arma da Liberdade” com composições de músicos que foram perseguidos por ditaduras e que lutaram contra elas, como Kreisler, F. Lopes Graça, P. Casals e Shostakovitch. Excelente actuação e actual propósito!
Um dos concertos que mais entusiasmo despertou no público foi o do famoso Quarteto do Rio acompanhado pela Orquestra Filarmonia das Beiras, dirigida pelo maestro AntónioVassalo Lourenço, com as impecáveis harmonizações vocais de conhecidos temas da música popular brasileira.
Depois dos concertos de Liliana Duarte e Andreia Tomás (órgão e canto) e de Nuno Silva e José Magalhães (acordeão e saxofone), o final deste festival com chave de ouro com o concerto da Orquestra XXI.
Parafraseando o director artístico do Festival, José Carlos Sousa, “numa época de dor e sofrimento humano”, esta festa da música trouxe efectivamente “momentos de grande beleza, pondo o foco no melhor que o homem pode fazer”. Provando assim, acrescentaria eu, que o melhor investimento para a defesa da paz e da harmonia universal está nas artes que unem as culturas e os povos de todo o Mundo.
Carlos Vieira e Castro