Bairro Municipal de Viseu: a demolição de um património arquitectónico e social

Novembro 13, 2012 | Opinião

O desprezo pelos moradores do Bairro Municipal de Viseu, vulgo Bairro da Cadeia, não é recente; já em 9.09.1989, o jornal O Comércio do Porto publicava uma reportagem sobre o escandaloso estado de degradação deste bairro, com uma lixeira em pleno espaço público, onde brincavam as crianças, da responsabilidade dos próprios funcionários municipais que ali amontoavam entulho de obras e outros lixos.

De há uns quinze ou vinte anos para cá, a autarquia tem deixado as casas devolutas à medida que vão ficando vagas, utilizando-as como estaleiro de obras ou destelhando-as e permitindo que o matagal alastre pelos jardins e quintais, atraindo ratos e répteis. Mais do que impedir ocupações “selvagens”, o objectivo parece ser o mesmo que preside à não substituição de telhados danificados ao ponto de chover dentro das casas: degradar o bairro, pressionando os moradores a aceitarem o realojamento como um mal menor.

Durante os 64 anos de vida do Bairro, a Câmara Municipal não investiu um tostão no interior das habitações, excepto nos anos 80 e 90 com a substituição do soalho deteriorado por lajes de abobadilha e vigota, e mesmo aí foram os inquilinos a pagar o acabamento. Foram os moradores que fizeram obras de requalificação das casas de banho, originalmente sem chuveiro, nem água quente, e, face à exiguidade dos espaços interiores,  acoplaram anexos desfiguradores.

Precipitadamente, sem sequer avisar as pessoas por escrito, em mais uma manifestação de desprezo e falta de consideração pelos moradores, a autarquia impôs um prazo, verbalmente, para transportarem os seus haveres para outras casas devolutas do bairro ou para apartamentos desocupados no Bairro 1º de Maio, ali ao lado, de modo a darem início às primeiras demolições de casas no início desta semana.

Trata-se de um crime de lesa património arquitectónico, ao destruir um bairro com “valor histórico enquanto conjunto exemplar de um modelo urbanístico que fez escola, que moldou a paisagem urbana portuguesa e que é importante para a compreensão de uma época e de uma sociedade (…) Património arquitectónico, sem dúvida tanto mais que os exemplares existentes na região – na tipologia de bairro social – não abundam”, segundo a Análise Patrimonial do Bairro da Cadeia, de David Ferreira, técnico do Património do IGESPAR, de que foi dado conhecimento à Câmara pela ex-Associação de Moradores do Bairro Municipal.

Em 27 de Abril de 2012,   na Assembleia Municipal de Viseu, apresentei, em nome do BE,  uma “Recomendação à Câmara para a Reabilitação e Classificação do Bairro Municipal como conjunto arquitectónico de interesse municipal”.

A Câmara Municipal, ao decidir poupar nove casas para “perpetuar a memória do bairro”, reconhece o seu valor arquitectónico e social, mas mais não faz do que salvar dois dedos e amputar-lhe o corpo, sepultando o “espírito do lugar”.

A demolição deste bairro  é também um crime social sobretudo numa altura de crise como a que vivemos, em que os pedidos de habitação social às Câmaras Municipais têm mais do que duplicado, porquanto se pretende retirar mais de 100 fogos da sua função social, arrasando um bairro inteiro para construir apenas 56 fogos de habitação social. O espaço restante é para entregar à especulação imobiliária privada. Essa intenção ficou mais do que explícita nas palavras de Fernando Ruas na sessão de 14.09.2009 da Assembleia Municipal de Viseu: “Não nos podemos dar ao luxo de ter no centro da cidade uma habitação unifamiliar que ocupa um espaço nobre para meia dúzia de pessoas.”(…) “Não estamos disponíveis para num dos melhores locais de Viseu, deixar habitação social, só porque as pessoas não querem literalmente mudar para uma habitação horizontal.”

Recordo que na recomendação do Bloco de Esquerda à CMV, se propunha, para além da classificação do bairro,  que o executivo,(I) aproveitando a indisponibilidade financeira do IHRU,  privilegiasse a reabilitação do edificado, em detrimento das novas construções, não desperdiçando recursos; (II) Elabore um novo projecto para a reabilitação do Bairro Municipal que salvaguarde o conjunto arquitectónico, recupere o parque público que outrora existiu, com bancos de jardim e parque infantil, dignificando as habitações e mantendo-as ao serviço da habitação social, com actualização das rendas de modo adequado, dando preferência a casais idosos com autonomia, mas que já não possam subir escadas e a jovens casais que tenham aderido à moda saudável e ecológica das hortas urbanas”.

Se há moradores que encaram o realojamento como um mal menor, aceitando morar num “caixote” em alternativa a uma casa que a autarquia deixou degradar ao ponto de chover lá dentro, outros há que não querem trocar a qualidade de vida que ali vivem há décadas, em casas com jardim à frente e quintal nas traseiras, em ruas bordejadas de cedros e plátanos, onde se pode passear sem medo de ser atropelado,  num espaço de sociabilidade, de relacionamento comunitário, já raro nas urbes modernas.

Será este o último dos crimes urbanísticos de Fernando Ruas? Que urgência o fez transpor a indisponibilidade financeira do IRHU? Que interesses se sobrepõem aos do município?

Carlos Vieira e Castro

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